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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Divina comédia imobiliária (na visão dos infernos)



Creio eu que só deixei de ser inquilino nos dois extremos da minha vida.
Em minha gestação, pude ouvir muitas vezes os médicos insinuarem que aquele útero era de propriedade de minha mãe.
Ledo engano.
Ali eu era dono, proprietário, posseiro, invasor, ou seja lá como queiram chamar.
Só sei que eu mandava e desmandava, tinha tudo que era, para mim, necessário, de mão beijada, e ainda, pra fugir do tédio, volta e meia saia chutando tudo e até esta atitude passou a ser esperada por muitos com expectativa maior que a do milésimo gol do Pelé.
Até fazia brincadeiras dizendo pra mim mesmo:
-Este Edson já era antes do meu nascimento.
E ainda diziam que este é o país do futebol.
Eu era uma mala, que chegava muitas vezes a dar enjoo e mesmo assim estas reações adversas eram tidas como a maravilha das maravilhas.
Confesso aos senhores que naquela época eu andava me sentindo “o cara”, mas em poucos meses a realidade bateu em minha porta e tive que finalmente nascer, foi então que começaram os contratempos.
Já de cara fui tomando um tabefe pra sacar a mesmice da minha existência, sensação esta que ao dar a primeira mamada se foi rapidinho, a ponto de me fazer olhar bem para aquele doutor maldito e dizer em telepatia infantil:
-E aí, vai encarar?!
Como decepção sempre anda aos bandos, logo me jogaram num lugar estranho e me fizeram dividir meu espaço com uma galera mal humorada que, em meio a tanta cagada, só fazia chorar. Minha gente!
Isto deve ser muito contagioso e em pouco tempo eu já estava na mesma onda, aprendi ali o sentido do “Diga-me com quem andas e direi quem tu és”.
Depois dali fui morar um bom tempo na casa dos meus pais.
Ali não havia tanta gente como na ultima moradia, mas mesmo assim dividia lugar com uns apressadinhos que por chegarem primeiro estavam se achando.
Novamente pude ter a experiência do poder quando percebia que eles, mesmo que irritadíssimos, tinham sempre que aceitar que eu era a peça principal dali.
Entre alguns tropeços, a coisa foi acontecendo de forma tranquila até cair sobre meus ombros as pesadas responsabilidades infantis.
Fazer xixi no penico, avisar quando queria fazer coco, se limpar e se alimentar sozinho, cair muito tentando contentar alguns que achavam que eu tinha que aprender a me equilibrar num merda de duas rodas, quando eu mesmo não via motivos para andar dessa difícil forma se a mesma veio com quatro rodas de fábrica.
Enfim, percebi que crescer era assumir certos riscos a fim de ser sociável.
Foi então que, mais crescidinho, porém, não mais experiente, resolvi casar-me e ter realmente minha própria casa, meu santo espaço, mal sabendo eu que aquela doçura de menina com quem eu namorava desde o primário pensava mais ou menos da mesma forma e estava totalmente decidida deixar de brincar de casinha para brincar de casão.
Lembro-me ainda dos preparativos, cada coisa que eu comprava, fosse lá uma geladeira, um fogão, dormitório ela já dizia a todos:
-Olha só o que “nós” compramos!
E quando ela comprava alguma quinquilharia qualquer de enfeite dizia:
-Olha o que “eu” comprei!
Tá! Eu sei, são coisas de mulher, mas gostaria que as pessoas que defendem esta tese tivessem na época me ajudado a pagar o enorme carne das casas Bahia.
No início do casamento, percebendo suas más intenções, eu logo resolvi me impor e delimitar espaço, porém, ao perceber que meus domínios não se estendiam por mais de 10% da casa, resolvi negociar e passei, satisfazendo inúmeras exigências dela, a compartilhar meus 10% com os 90% dela e senti que fiz uma excelente barganha, porque já estava preste a perder o pouco que tinha, mas confesso a vocês que se tem algum dom nato do bicho homem, este é o dom de se acostumar, vivia tudo aquilo como uma coisa normal e ainda me gabava de ser eu o dono do cachorro não querendo enxergar que isto só era possível para que eu fosse obrigado a limpar todos os dias a sujeira do mesmo.
Mas pelo Duque eu fazia tudo, era realmente um grande companheiro, sempre disposto a me ouvir entre lambidas e arranhões, só me chateava um pouco ele não vestir a camisa do sexo forte e muitas vezes se bandear pro lado da minha esposa a troco de míseros petiscos que eram tirados sorrateiramente do meu próprio almoço.
Aí, vieram as crianças e logo de cara tive que dar o Duque embora, só porque os entendidos acharam que o Mr. Abana Cauda era um risco para uma criança.
Imaginem a decepção deste que vos escreve, a única criatura que parecia se importar com minha existência estava indo embora, com focinho de quem me odiaria pelo resto de sua vida de cão.
Tive até que fazer terapia na tentativa vã de superar isto.
Digo vã, porque ainda hoje me pergunto por onde andara o Duque, e como sei bem que a vida de cão é bem mais curta que a dos humanos, entro numas nóias de que ele já deve até ter reencarnado em forma de um destes fdps que calculam os reajustes das aposentadorias e agora esta indo à forra, também nunca tive a coragem de perguntar se, ao menos, a criança em questão era realmente minha, pois gato escaldado tem medo de água fria.
Posso afirmar que, com a chegada das crianças pude ir à forra um bocadinho, pois a casa já não tinha mais dono, era uma baderna e no meio de tanta zona ficava fácil zonear também e colocar a culpa nos pimpolhos, acho que pra isso servem as crianças, para a forra dos pais.
Posso dizer que foram tempos bons, eu e o Duque fomos vingados, falando nisso...Fdp de cachorro.
Vocês viram de quanto foi o ultimo reajuste?
Vingança tem limite, pow!
Sei que as crianças cresceram, casaram-se e como hoje a mãe não tem mais tempo para nada, senão cuidar da vida dos filhos, noras, filhas, genros e netos, a casa, enfim, é toda minha.
Fez-se justiça.
Hoje posso me dar ao luxo de sentar-me na minha cadeira de balanço na varanda, pegar orgulhoso o carnê do IPTU em meu nome e pensar...
QUE MERDA, HEIN!?

Ayahuasca

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Deserto


Quisera eu, ser viajante.
Não ser, como hoje, vizinho do medo, trancando minhas portas, fazendo-me própria morada, sofrendo em segredo.
Fugir sequer por uma noite da segurança de alamedas calçadas levando comigo apenas a lembrança do teu beijo.
Perambular pelas vielas dos becos da minha urgência e ainda que, de olhos vendados, encontrar meu desejo.
Sou criança sem casa, filhote caído do ninho, tentando nutrir-me do carinho do mundo já que da mãe me falta o afeto.
Este vôo inconstante, das aves atrofiadas, é menos seguro que qualquer futuro incerto.
Poço seco...
Galho ao vento...
Risada forçada...
Deserto.


Ayahuasca