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domingo, 8 de novembro de 2009

Obituário narcisista



Se tem coisa que odeio
É essa gente aparecida
E passei depois de morto
A odiar bem mais que em vida

Já vivi tanto desgosto
Por esta estrada tão sofrida
Que até pensei na morte
Como sendo uma saída

Mas falando desse jeito
Posso causar estranheza
Pra que não julguem este sujeito
Deixem então que eu esclareça

Da morte, digo pro senhor
Tenho eu muito receio
Sou um cagão inveterado
De morrer, morro de medo

O fato é que temer não nos livra
De encararmos nossa sina
E a ferina na espreita nos pega
Seja em casa ou numa esquina

E comigo assim se deu
Nem cabe aqui grande discurso
Foi eu ouvir “ele morreu”
Sem perceber já tava eu duro

E o que pensa em recompensa
Receber um defunto recente
Senão um velório com pompa
Cheio de flor, amigo e parente

E lá estava eu já todo ajeitado
Confesso que o cheiro de rosa enjoava
Muitas velas em candelabros
Tinha ali até quem chorava

Mesmo por falsidade não seria absurdo
Aturei isso na vida que tive
Não me proibiriam agora na morte
De ter da falsidade o revide

Descobri que de cara fui quase um santo
Esperando um pouquinho, fui mais bom do que mau
Lá pelas tantas dava pra ouvir pelos cantos
Era só gente em mim metendo o pau

Mal morri já quis estar vivo
E falar alguns segredos de quem tanto criticava
Queria ver quem ali ia ter peito
De falar mal desta alma penada

Ia ter briga de amigos
Fim de sociedade e muito lamento
E garanto que com mais da metade dali
Eu acabava com o casamento

Por fim acabei percebendo em relevância
Que próximo ao meu esquife é que era meu reino
Por ali meus erros não tinham importância
Era lindo, bondoso e ingênuo

Até nas conversas paralelas
Tudo estava nos conformes
Piadas, futebol, doença e política
Até o bla bla bla que o defunto parece que dorme

Mas foi lá pela madrugada
Que acabou o meu reinado
Veio da noitada uma danada
Descasada mesmo tendo engravidado

De longe vi aquilo vindo
E confesso quase cheguei a rir
Nunca vi barriga tão grande
Parecia que ia explodir

Chegou Arfando e pedindo água
Segurava a barriga como se ela fosse correr
Só podia querer atenção a safada
Se sabia que era assim porque diabos então foi meter

Era um papo de dor nas pernas, enjôo
Pressão que vivia a baixar
Todo mundo se preocupando
Ate eu, quase fui lá ajudar

Quando lhe perguntaram pra quando era
E ela disse “Ta pra estes dias”
Fiquei bem quietinho pensando
Quem neste estado sai pra folia?

E quando todos já estavam se acostumando
A todo aquele chororô
Foi que ela saiu gritando
ACUDAM A BORSA ESTORÔ!!!

Começou um corre-corre
Do mais rico ao mais simplório
Parecia até ter ocorrido
Uma treta no velório

Ajeitaram então a pobre
Numa cadeira bem ao meu lado
Foi só abrir as pernas da moça
Que em volta encheu de tarado

Eu até arrisquei uma olhadela
Pra ver se do tudo via um pouco
Pois apesar de ser defunto
Pra estas coisas não to morto

No começo tudo bem
Mas fui ficando assustado
Como que aquela coisa gostosa
Podia ficar naquele estado

Foi me dando tanto enjôo
Que se não to morto me mato
Fiquei pensando se podia ter morrido
Por comer algo estragado

Aquela coisarada nojenta saindo
E ali, na frente de todo mundo
Quase fecho o meu caixão
E dizem ter nojo de defunto

Enfim a criança nasceu
Diziam "tem que bater pra chorar"
Depois que ela pegou firme no choro
Deviam também bater pra parar

Achei uma falta de respeito
Até o terço eles pararam
E pra leva-la pro hospital
Até meu rabecão usaram

Nem na hora do sepultamento
Conseguiam mudar o assunto
Se não fui importante em vida
Pensei que seria como defunto

Mas coloquemos uma pedra nisso
Não é bom ir pra outra vida magoado
Já até me desculpei com São Pedro
Disse que, como eu, este assunto esta enterrado

E confesso hoje pra vocês
Melhor a morte que aboiolar
Porque se estou vivo, mesmo gostando da coisa
Não sei se ia dar mais pra encarar

Ayahuasca

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