Muito tempo atrás, num vilarejo longínquo, vivia um menino que como muitos dali já com tão pouca idade convivia com as misérias da vida.
Os brinquedos dele e de seus amiguinhos eram gravetos, troncos, pedras, até ossos de animais serviam e com a devida imaginação se transformavam em tudo que eles queriam que fossem carrinhos, caminhões de bombeiro, tudo mesmo o que a necessidade do momento lhes pedia.
Até que um dia apresentaram, a este projeto tupiniquim de Fernão Capelo Gaivota um bom velhinho, que o desejo de todos os bons meninos realizava e correndo foi ele contar a boa nova a todos, pois para ele agora seria fácil de qualquer um resolver seus problemas.
Pôxa!
Bastava ser bonzinho e zupt... resolvido.
Que fantástico!
Ao receber a noticia, seus amigos tiveram reações diferentes, os de idade um pouco mais avançada receberam-na com total descaso e ainda fizeram chacota.
Afinal... Por já estarem um pouco mais calejados com a vida seria mesmo imprudente acreditar em algo tão sem sentido.
Alguns dos mais novos se entusiasmaram, mas logo foram persuadidos com os argumentos realistas dos mais velhos e pela primeira vez na vida ele teve a sensação de se sentir só com seus sonhos.
Aos poucos ele foi se distanciando das outras crianças, não fisicamente, mas em pensamentos e ideais, guardava muitas vezes seu sonho a sete chaves, pois não lhe fazia bem se sentir tão diferente dos demais.
Ainda participava das brincadeiras, mas já não via tanta graça naqueles brinquedos imaginários, imaginação por imaginação seu sonho era bem melhor e agora ele imaginava coisa maior.
Na verdade seu sonho era uma coisa que ele numa destas visitas à cidade viu numa propaganda de revista que ele folheou na loja de quinquilharias do seu Altamiro.
Aquilo sim valia a pena imaginar.
Um aeroplano, que como dizia a propaganda, usando um elástico era lançado ao ar e prometia flutuar livremente por alguns instantes.
Uma espécie de bodoque, mas com uma finalidade bem melhor que a de matar passarinhos.
Ah!
Era isto que ele queria, seria bonzinho e um dia certamente receberia seu prêmio.
O tempo foi passando e uma vez por ano ele ficava a espera da concretização do trato.
Entre a felicidade da possibilidade e a ansiedade da frustração muitas vezes ele se viu cansado, mas nunca cogitou deixar de sonhar, só se perguntava se estava sendo bom o bastante.
Até que numa dada noite, num destes dias 24, ele percebeu algo diferente, enquanto todos já estavam dormindo ele notou que do barracão onde seu pai guardava as ferramentas vinha uma luz.
Em meio ao medo e a curiosidade ele correu para averiguar do que se tratava e pelas frestas das madeiras mal rejuntadas pôde ele perceber que se tratava de inúmeras luzes coloridas que piscavam alternadamente.
Empurrando com esforço a porta do barracão, que teimava sempre em emperrar, ele pode ter a visão de algo com o que ele nunca sonhara ali na sua frente não estava o aeroplano que ele tanto desejava, mas sim uma coisa muito melhor.
Era uma miniatura de nave espacial e ao seu lado não existia um elástico pra lançá-la e sim um controle remoto que não me perguntem como ele conseguiu manusear, pois bem sabemos que quando um sonhador encontra seu sonho não é necessário nenhum manual de instrução, a adaptação é de fato imediata.
E foi ele para o descampado, ainda não acreditando no que via testar seu presente.
Precisou de muito pouco tempo pra que sua navezinha já estivesse subindo muito alto, dando vôos rasantes e fazendo manobras radicais sem ele mesmo saber o que significavam estas coisas.
Que sensação maravilhosa ter nas próprias mãos o controle de seu sonho.
Que sensação de liberdade.
E ele ali sozinho ficava imaginando o que diriam todos ao depararem com aquela formosura, ao realmente perceberem que o seu sonho era real, ele mal podia conter toda aquela felicidade.
E antes que amanhecesse ele teve a idéia de voltar sem falar nada a ninguém e só contar quando por mais uma vez viessem perguntar, com certo sarcasmo, se ele tinha recebido alguma encomenda naquela noite e ele iria à forra depois de tantas gozações.
Mas, foi no caminho de volta que algo ainda mais inacreditável lhe aconteceria.
Voltando pode notar ao longe que alguém no meio da trilha esperava sentado, não sentiu medo, pois a sensação da presença do estranho era boa.
Pensou ser o bom velhinho em pessoa para ver sua reação, mas conforme foi chegando perto percebeu não se parecer nada com a descrição que lhe deram dele, este se tratava de um homem franzino, de pele escura, mas a barba e o cabelo branco, o olhar doce e a serenidade contagiante, batiam bem com a descrição.
Isto não importava mesmo.
Apressou-se em chegar para desfiar o rosário de agradecimentos e antes que ele pudesse falar alguma coisa o bom velhinho lhe diz:
Feliz né filho?
Ele responde:
Não tenho palavras para dizer quanto, é muito mais do que eu sempre sonhei, nem imaginava merecer tanto.
E o bom velhinho pede que o menino se sente, pois ele precisa lhe explicar algo que lhe seria muito mais importante que o presente em si.
Com a mesma serenidade o bom velhinho diz:
Sabia que você se sentiria assim e sei que boa parte desta felicidade não se deve somente ao presente, mas sim pela certeza que seu sonho é real e ainda muito melhor do que você imaginava.
Não quero que te entristeça, quero é que entenda que este sonho é realmente teu, mas ainda não é chegada à hora de vivenciá-lo, só resolvi mostrá-lo a ti para que saibas o que de bom te espera e não seja mais um a perder o seu sonho pelos tristes caminhos da vida.
Preciso levar seu sonho comigo e gostaria de te deixar também a certeza que estarei cuidando com zelo dele para quando a hora certa chegar.
Só te advirto de uma coisa...
Você mesmo já percebeu que ele é muito mais do que julgas merecer, portanto siga seus dias se esforçando em realmente merecê-lo.
As palavras do ancião ecoam na mente do menino dando piruetas e as lágrimas lhe impedem de enxergar o exato momento em que o bom velhinho se despede levando consigo o tão esperado sonho.
O menino sem nada entender fica ali parado por não se sabe quanto tempo até que resolve seguir no caminho de volta.
Quem o veria naquele momento imaginaria que ele caminhava serenamente, mas sua mente fervilhava em questionamentos e incertezas.
Primeiro pensou qual seria o propósito daquilo tudo?
Depois, que iria continuar convivendo com as chacotas dos outros sem poder nada provar.
E por um bom tempo ficou tentando entender porque deixaram ele sentir o gosto de seu sonho se ainda não merecia vivê-lo intensamente.
Até que a fúria do mar que violentamente atacava a praia de sua alma acalmou e ele decidiu continuar vivendo, sonhando e esperando chegar à hora de vivenciar seu sonho.
Hoje ele já com a barba e os cabelos grisalhos, senta em cima do tempo vivido e segue sua vida de forma normal, se esforçando muito entre um tropeço e outro para fazer por merecer seu sonho.
Só se diferencia dos outros quando todas as noites antes de dormir, pede que sua navezinha sobrevoe seus sonhos e faça com ele um contato imediato de qualquer que seja o grau.
Ayahuasca